‘Sinofobia S.A.’: compreendendo o complexo industrial anti-China
Translation by: Eduardo Pessine
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Armados com financiamento estatal e patrocinados pela indústria de armas, um punhado de influentes think-tanks estão definindo os termos para uma Nova Guerra Fria contra a China, impulsionando a aliança liderada pelos Estados Unidos em direção a um desastroso conflito às custas de todos nós.
Dê um mergulho nos meandros da ‘Sinofobia S.A.’ para descobrir como fugir da máquina de propaganda.
Aaliança dos Estados Unidos está despencando em direção a um conflito com a China. Nos últimos meses, o governo estadunidense tem tomado medidas inéditas para subverter relações normais com a China: sanções contra autoridades do Partido Comunista Chinês, banimentos contra companhias chinesas de tecnologia como TikTok e Huawei, interrogatórios e espionagem de estudantes e cientistas chineses, e até mesmo o fechamento sumário do consulado chinês em Houston.
O Secretário de Estado Mike Pompeo chama isso de dar um fim ao “engajamento cego” com um estado chinês que ele rotula como uma ameaça existencial ao “mundo livre”. E os outros membros da aliança de inteligência “Five Eyes” – Canadá, Nova Zelândia e Reino Unido – estão acatando amplamente à pressão estadunidense para tomarem medidas semelhantes para isolar a China.
Entretanto, a doutrina política ocidental de uma “competição entre grandes potências” com a China não tem sido acompanhada de um amplo debate público. Ao contrário, essa vociferante retórica de estado tem coincidido com a visão pública da China atingindo os níveis mais baixos da história. Graças em parte à cobertura racista da mídia, que culpou a China pela disseminação do coronavírus, visões desfavoráveis da China estão disparando.
A Pew Research publicou, em julho, que visões desfavoráveis da China atingiram “novos picos” nos Estados Unidos – mais do que dobraram, de 35 a 73%, entre 2005 e 2020. A confiança australiana em seu vizinho ao norte é ainda pior: em 2020, 77% dos australianos expressaram desconfiança em relação à China, comparado a apenas 38% em 2006.
“Visão negativa da China atinge novo pico nos Estados Unidos”. Imagem via pewresearch.org
Já que os Estados Unidos e outros países ocidentais estão atolados em crises devido à Covid-19, ao desemprego, à estagnação dos salários e ao racismo estrutural, a fictícia “ameaça chinesa” deveria ser a menor de nossas preocupações. Afinal, a China tem deixado claro diversas vezes que busca relações pacíficas e cooperação com os Estados Unidos, além do princípio de política externa de uma “comunidade de futuro compartilhado pela humanidade” estar consagrado na constituição do Partido Comunista. Não se engane – a Nova Guerra Fria contra a China é uma escalada unilateral liderada pelos Estados Unidos e seus aliados.
O fato da opinião pública ocidental sobre a China estar marchando em sincronia com os apelos do Departamento de Estado por agressões típicas da Guerra Fria reflete a convergência dos interesses militares, estatais e da mídia corporativa, que monopolizam nosso ecossistema midiático. Por de trás da algazarra do Departamento de Estado e do “Pivô para a Ásia” existe uma máquina silenciosa e bem-preparada ocupada em manufaturar o consenso em relação a uma guerra contra a China. Muito frequentemente, as posições políticas agressivas que patrocinam são tomadas como “verdades” objetivas, e não como propaganda pró-guerra que trabalha para os interesses das corporações militares e elites políticas.
Nos chamamos-a de Sinofobia S.A. – um complexo industrial de informação onde financiamento estatal ocidental, fabricantes de armas bilionários e think-tanks de direita coalescem e operam em sincronia para inundar a mídia com mensagens de que a China é o inimigo público número um. Armados com financiamento estatal e patrocinados pela indústria militar, esse punhado de influentes think-tanks definem os termos de uma Nova Guerra Fria contra a China. O mesmo ecossistema midiático que impulsionou as engrenagens da guerra perpétua para a desastrosa intervenção no Oriente Médio está agora ocupado em manufaturar o consenso para um conflito contra a China.
Ao saturar os noticiários com mensagens anti-China, essa máquina midiática está convencendo os cidadãos médios de que uma Nova Guerra Fria é de seu interesse. Na realidade, alimentar a idéia de uma “ameaça chinesa” imaginária só serve aos interesses das elites políticas e dos executivos da indústria militar, que esperam lucrar com essa desastrosa escalada geopolítica.
Quem é quem na Sinofobia S.A.
Para impor um verdadeiro obstáculo à Nova Guerra Fria contra a China, o movimento anti-guerra deve desenvolver um letramento midiático crítico para ver além da máquina de propaganda imperialista. Um olhar próximo revela que um punhado de think-tanks, acadêmicos e “especialistas em segurança” aparecem repetidamente na cobertura da mídia hegemônica sobre a China. Além disso, esses especialistas “independentes” possuem vínculos explícitos com a indústria bélica e os departamentos de estado dos Estados Unidos e seus aliados.
O Australian Strategic Policy (ASPI) é um desses atores. É conhecido como “o think-tank responsável por mudar a visão da China na Austrália” e denunciado por políticos australianos progressistas como “falcões que visam travar uma Nova Guerra Fria”. Mas apesar de seu viés de direita, o ASPI satura a mídia ocidental de todo o espectro político – da Breitbart a Fox News, da CNN ao New York Times. A ampla legimitidade de think-tanks como o ASPI é um dos fatores responsáveis pelo atual apoio bipartidário à agressão imperialista contra a China.
De alegações sobre defesa nacional e cibersegurança até sobre direitos humanos, os falcões do ASPI usam como arma uma variedade de questões para apoiar seus apelos por uma escalada militar contra a China. O ASPI e sua equipe têm reivindicado restrições de vistos para estudantes e cientistas chineses, alegado a existência de um programa secreto de armas biológicas chinesas, e afirmado que a China está explorando a Antártida para obter vantagens militares. Não importa o quão absurdas são as alegações, o ASPI é bem recebido pelo ecossistema midiático faminto por controvérsias e por um clima geopolítico cada vez mais próximo de agressões militares contra a China.
E é exatamente isso que o ASPI quer. Seu diretor executivo, Peter Jennings, se descreve descaradamente como um “cowboy da segurança nacional”, dizendo que “a Austrália precisa de mais cowboys e menos subserviência”. Mesmo com o primeiro-ministro australiano Scott Morrison aprovando gastos recordes em defesa, Jennings pede por mais, afirmando que “se estamos escorregando para uma guerra, o dinheiro deve fluir”.
A atitude beligerante faz sentido no contexto financeiro do ASPI. Apesar de ser citado como “especialista não-partidário” em tudo relacionado à China, quando se trata de lucros com a guerra, o ASPI tem suas apostas.
E isso porque o ASPI – como muitas das grandes figuras da Sinofobia S.A. – recebe um grande financiamento das Forças Armadas australianas e de fabricantes de armas estadunidenses, como a Lockheed Martin e Raytheon.
No ano fiscal de 2019-2020, o ASPI recebeu 69% de seu financiamento – mais de AU$ 7 milhões – do Departamento de Defesa e do governo federal da Austrália. Outros AU$ 1,89 milhões vieram de agências governamentais estrangeiras – incluindo as embaixadas de Israel e Japão, os Departamentos de Defesa e de Estado estadunidenses e do Centro de Comunicações Estratégicas da OTAN. Longe de ser um contraponto não-partidário à agenda imperialista, os mesmos governos que escalam as agressões geopolíticas contra a China são os financiadores principais do ASPI.
Perturbadoramente, outros AU$ 1,1 milhões vieram de empresas de defesa e do setor privado, incluindo a Lockheed Martin ($25,000 por um “patrocínio estratégico”) e a Northrop Grumman ($67,500 por um “patrocínio”).
Em uma demonstração escancarada de seus interesses, as mesmas corporações de armas que patrocinam a cruzada anti-China do ASPI estão também abastecendo a Nova Guerra Fria contra a China. Em 2016, o Departamento de Defesa australiano garantiu à Lockheed Martin um contrato de AU$ 1,4 bilhões por um “sistema de integração de combate”, como parte de seu programa de submarinos para “enfrentar” a China. Sob o mesmo programa, a companhia de defesa Naval Group – que contribuiu com $16,666.68 em patrocínio ao ASPI em 2019 e 2020 – foi premiada com um contrato de $605 milhões para um projeto de submarino.
O escopo de potenciais lucros com um conflito militar com a China é enorme. Em nome do “Pivô para a Ásia”, os Estados Unidos já aumentaram as exportações de armas para aliados como o Japão e Austrália como parte da nova doutrina de contenção anti-China. Com totais de exportações de $7,8 bilhões à Austrália e $6,28 bilhões à Coréia do Sul apenas entre 2014 e 2018, e com as regulações mais brandas permitindo exportações de drones militares à Índia, estes negócios inflados são um prato cheio para os fabricantes de armas estadunidenses.
Cada relato dramático sobre a “ameaça chinesa” tem o mesmo resultado: mais navios de guerra no Mar do Sul da China, mais aviões de reconhecimento enviado ao espaço aéreo chinês, e mais estações de mísseis e anti-aéreas nos “aliados” e estados clientes dos Estados Unidos na Ásia e no Pacífico. A Nova Guerra Fria contra a China significa bilhões em lucros para os fabricantes de armas norte-americanos, que discretamente financiam as “pesquisas” que garantem a justificativa para uma maior escalada militar.
Um ciclo de guerra perpétua
É este ciclo vicioso do complexo industrial-militar que movimenta a Sinofobia S.A. Já tendo presenciado essa convergência entre a mídia corporativa, fabricantes de armas e Departamento de Estado fabricando o consentimento para as desastrosas guerras do Iraque e Afeganistão, nós deveríamos reconhecer esse padrão. Mas, por enquanto, parece que as mesmas ferramentas estão funcionando novamente.
Primeiro, especialistas em segurança “independentes” como o ASPI, financiados por governos ocidentais e suas indústrias armamentistas, fornecem evidências “irrefutáveis” sobre a dita ameaça chinesa.
Segundo, estes relatos são pinçados, citados e amplificados pela mídia hegemônica e absorvidos pelo público mais amplo.
Terceiro, as nações ocidentais e seus aliados citam esses relatos sobre a “ameaça chinesa” para justificarem suas próprias ambições geopolíticas e agressão militar contra a China.
E finalmente, departamentos de defesa fornecem contratos bilionários para as corporações armamentistas para equipar o belicoso “Pivô para a Ásia” – completando o ciclo ao encher os bolsos das empresas que financiam os think-tanks citados inicialmente.
É claro, o ASPI é apenas um dos diversos pesos-pesados da indústria anti-China. Gigantes da esfera de segurança de Washington, como o Center for Strategic & International Studies (CSIS) e o Council on Foreign Relations são similarmente subordinados aos seus estados e doadores da indústria militar.
O CSIS tem sido descrito como um dos think-tanks mais influentes do mundo. Seus relatórios dramáticos sobre campanhas de operações militares e “influência estrangeira” chinesa rendem manchetes na Forbes, New York Times, e até mesmo em meios à esquerda como o Politico. Bonnie Glaser, diretora do “China Power Project”, do CSIS, é uma comentadora sobre a China particularmente requisitada. Ela demonizou os subsídios chineses para a indústria doméstica, chamou a Nova Rota da Seda de um plano para trazer países para a “órbita da China” e “fortalecer o autoritarismo”, pediu por uma “ofensiva” contra a valorização do marxismo na China como uma alternativa ao livre-mercado neoliberal, e afirmou que “muitas das coisas que o governo Trump têm feito para destacar as ameaças impostas pela China são… corretas”.
Nenhuma dessas entrevistas, artigos de opinião e aparições na mídia hegemônica mencionam que o CSIS tem dentre seus “doadores corporativos e associados comerciais” a Northrop Grumman (contribuição anual de $500,000), a Boeing, a General Atomics, a Lockheed Martin (contribuição anual entre $200,000 e $499,999) e a Raytheon (contribuição anual entre $100,000 e $199,999).
Ainda pior do que simplesmente aceitar financiamento da indústria bélica, o CSIS tem realizado encontros a portas fechadas com lobistas de companhias armamentistas e tem pressionado por maiores exportações de drones fabricados por financiadores como a General Atomic e Lockheed Martin.
Mas ao invés de chamar a atenção para esse conflito de interesses, a mídia hegemônica retrata de forma acrítica estes think-tanks como especialistas em segurança “imparciais”. Apenas um punhado de plataformas independentes de mídia se preocupam em apontar esses interesses “escusos” que pavimentam o caminho para a guerra perpétua. Ao contrário, os funcionários destes think-tanks são recebidos como especialistas objetivos e esbanjam atenção da mídia, tornando-os as fontes principais para comentários e editoriais sobre tudo relacionado à China.
De acordo com a mídia hegemônica, não há conflito de interesses: há apenas um conflito com a China, que deve ser apoiado.
A porta-giratória bipartidária
A relação incestuosa entre o Pentágono, think-tanks de segurança e o setor armamentista privado vai muito além do dinheiro sujo. Os próprios diplomatas de alto-nível entram e saem de seus cargos no Departamento de Defesa para os conselhos de corporações bélicas e institutos políticos, levando suas informações privilegiadas para ajudar a indústria militar a abocanhar dinheiro público.
A porta-giratória do complexo industrial-militar atravessa as linhas partidárias. Tomemos por exemplo Randall Schriver, um falcão anti-China pinçado por Steve Bannon para servir como secretário-assistente de Defesa para Questões de Segurança no Pacífico e Ásia no governo Trump. Schriver foi o presidente fundador do Project 2049 Institute, um think-tank de segurança linha-dura financiado por gigantes armamentistas como Lockheed Martin e General Atomics e instituições governamentais, incluindo o Ministério de Defesa Nacional de Taiwan e a National Endowment for Democracy. Presumivelmente, sob a liderança de Schriver, o Project 2049 pressionou por maiores vendas de armas para o Japão e Taiwan, enquanto alertava sobre uma suposta ameaça de uma “invasão relâmpago” de Taiwan ou uma “guerra acentuada” contra o Japão.
Sem ficar para trás, veteranos da política externa do governo Obama se enriqueceram formando “consultorias estratégicas” dedicadas a usar seu status privilegiado para auxiliar corporações armamentistas a ganhar contratos federais. Michèle Flournoy, uma das favoritas como secretária de Defesa para um governo Biden, serviu como subsecretária de Defesa de 2009 a 2012, e teve papel como uma das fundadoras do grupo de consultoria geopolítica WestExec Advisors, e co-fundadora do Center for a New American Security, um think-tank que prega ser especialista “no desafio chinês” e na “ameaça norte-coreana”, com a ajuda financeira dos suspeitos estatais e militares de sempre.
Com esse currículo, não é surpresa que Flournoy tem denunciado a “erosão da dissuasão americana” e tem pedido por novos investimentos e inovações para “manter a vantagem militar estadunidense” na Ásia, uma garantia clara de que um governo Biden significaria novos e maiores contratos para antigos colegas da indústria de segurança.
Inimigo número um
As engrenagens do complexo industrial-militar-informacional tem garantido que o debate sobre a China seja praticamente inexistente. A postura anti-China se tornou a questão central das eleições presidenciais de novembro. Mas efetivamente não há nenhuma diferença de política entre os campos de Biden e Trump – apenas uma competição retórica de propagandas e discursos sobre quem se prova ser mais “forte contra a China”.
A porta giratória da Sinofobia S.A. garante que, independente de uma vitória Democrata ou Republicana em novembro, os contratos armamentistas continuarão fluindo.
Apesar do incessante alarmismo sobre a iminente ameaça de uma “agressão chinesa”, a China tem deixado claro de que não quer um conflito com os Estados Unidos, e muito menos uma guerra quente. Durante encontros com a União Europeia em agosto, o chanceler chinês Wang Yi pediu por cooperação renovada, proclamando que “uma Guerra Fria seria um passo para trás”. Onde os Estados Unidos buscam unilateralismo, sanções e intervenção militar, a China tem investido em organizações internacionais, aumentado o financiamento da Organização Mundial da Saúde na ausência dos EUA e promovido a cooperação no combate à pandemia, no desenvolvimento de vacinas e auxiliado nações que sofrem sob sanções estadunidenses no combate à Covid-19.
Não se engane: não há uma suposta “escalada mútua” ou uma “rivalidade inter-imperialista” aqui – a escalada militar, econômica e de propaganda dos Estados Unidos é uma ofensiva unilateral para o conflito e para a guerra, a despeito dos repetidos pedidos da China por respeito mútuo, cooperação recíproca e relações baseadas no reconhecimento da soberania e dignidade nacional chinesa.
As elites políticas estadunidenses se voltaram à sinofobia como uma distração aos fracassos do capitalismo, neoliberalismo e de um violento império estadunidense que investe mais em guerras perpétuas do que em assistência médica básica e infraestrutura para o povo americano. É isso que torna a Sinofobia S.A. tão efetiva: o massivo descontentamento fomentado por uma pandemia sem solução, o desemprego em alta e as inquietações americanas sobre o futuro podem ser todos desviados para uma única ameaça “real”: a China.
A Sinofobia S.A. está fazendo hora-extra para convencer os americanos comuns de que a China – e não o supremacismo branco, o capitalismo e o militarismo – é o “verdadeiro inimigo”. E está funcionando: 78% dos americanos culpam a China pela disseminação da Covid-19 – mais do que culpam o próprio governo Trump pelo manejo da pandemia. E é por isso que o Congresso selou um orçamento de Defesa recorde para 2021, enquanto recusava auxílios para a pandemia, moratórias e outras proteções para os trabalhadores norte-americanos.
Conforme a Sinofobia S.A. nos aproxima a cada dia de uma guerra com a China, cabe a todos nós emperrar as engrenagens dessa máquina de guerra. Isso significa um olhar crítico sobre o aparato de informação que fabrica o consenso para uma guerra que só servirá ao topo do Império Americano e às corporações a quem ele serve.
A retroalimentada máquina de guerra formada por think-tanks, governos e corporações armamentistas está a todo vapor, convencendo as massas de que um conflito com a China é de interesse nacional. Mas está claro como nunca que o lucro irá para os executivos da Raytheon e Lockheed Martin – às custas de todos nós.
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