A Falácia em denunciar os “dois lados” no conflito entre os EUA e a China
Translated by Saulo R.
Em meio à pandemia global e campanhas eleitorais torturantes, os Estados Unidos está se moviendo em direção a um conflito com a China. A retórica grosseira de Trump, a respeito do “vírus chinês”, só torna mais óbvio o consenso das classes dominantes norte-americanas, que por anos buscaram uma profunda reorientação de sua política externa para identificar a China como uma ameaça.
A administração do presidente Barack Obama já iniciou movimentos estratégicos em direção à Ásia, planejava-se deslocar 60% das capacidades da marinha norte-americana para o Oceano Pacífico até este ano, movimento apelidado de “Pivot to Asia”. Sob o presidente Donald Trump este “pivot” apenas se intensificou. Em Abril de 2020, o orçamento do Comando Estadounidense para o Indo-Pacífico pediu mais de 20 bilhões de dólares para manter sua “fronteira militar sobre a China” por meio de uma expansão massiva de mísseis, radares e “redes de ataques de precisão” ao longo das ilhas do pacífico e da Oceania.
A todo momento a administração Trump busca sancionar e isolar a China, ordenando os aliados europeus a rejeitar investimento e tecnologia chineses, soando o alarme de um suposto “novo turno agressivo” (newly agressive turn) da China. Enquanto isso, a campanha do candidato democrata à presidência, Joe Biden, afirma que Trump “correu” da China, demonstrando a natureza bipartidária da Nova Guerra Fria.
A tal “ameaça chinesa” surgiu como a contradição definidora dum império estadounidense cada vez mais ciente de seu próprio declínio. Em poucas palavras, estamos testemunhando as classes domintantes de ambos os partidos estadounidenses brigarem para quem consegue ser o “mais durão” com a China.
Socialistas e anti-imperialistas, especialmente aqueles vivendo em bastiões do imperialismo, como o Canadá e os EUA, têm a singular responsabilidade de perturbar essa agressão que já está escalando. Mas ainda sim, grande parte da esquerda ocidental juntou-se a um suposto “terceiro campo”, que vê a confrontação norte-americana à China não só como uma escalada mútua das agressões, mas como uma “rivalidade inter-imperialista”.
Um ótimo exemplo dessa esquerda terceiro-campista é um ensaio polêmico, publicado na principal revista dos socialistas democráticos estadounidenses, que denunciou a China como uma ditadura capitalista e acusou, sem evidências, que a China estava embarcando em nefastas “ambições imperiais”. Da mesma forma, a Jacobin, outra famosa revista do gênero, publicou uma entrevista com o autor e professor de Cornell Eli Friedman, que advogava para os socialistas “rejeitarem o nacionalismo, seja de garbo estadounidense ou chinês”, o professor também pintou as relações sino-americanas como uma “competição etno-nacional”- colocando no mesmo balaio, a potência imperialista hegemônica global e uma nação do Sul Global com um histórico de humilhações nas mãos das potências imperiais.
O enquadramento das agressões imperialistas norte-americanas sobre a China como uma escalada de duas nações supostamente equivalentes obscurece mais do que esclarece, e é útil apenas para a propaganda anti-China, para as sanções e para a escalada militar, que acontece debaixo dos nossos narizes.
Uma análise realista dos fatos disponíveis demonstram claramente que as tensões entre Estados Unidos e China não são uma batalha por hegemonia, mas uma luta entre a dominância do imperialismo estadounidense e a soberiania chinesa aliada a do multilateralismo. Quem se diz “de esquerda” deve entender que o agravamento das agressões norte-americanas fazem parte de um histórico mais que centenário de esforços do imperialismo ocidental para dominar, controlar e modelar a China para seus próprio interesses.
Hegemonia vs. Multilateralismo
Por mais que ambos sejam as duas maiores economias do mundo e membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, os Estados Unidos e a China se assemelham pouco no que diz respeito aos seus sistemas de governo, ideologias e políticas em relação ao resto do mundo. Mesmo uma análise rasa sobre as agendas de política externa de cada Estado deixa claro o quão diametralmente opostas elas são.
O governo estadounidense – junto dos seus ajudantes em think tanks e na grande-imprensa – permanece comprometido a uma doutrina dogmática da Guerra Fria, na qual a ascenção de outra “grande potência” que contradiz a agenda hegemônica do Império estadounidense significa conflito e competição.
No século XX, essa ideologia transformou os Estados Unidos na maior força policial e ocupante militar do mundo. Hoje, os Estados Unidos mantém a indiscutível dominância militar do mundo, com o orçamento militar de 750 bilhões de dólares em 2020 – mais que o triplo do chinês – além de manter incomparáveis 800 bases militares em mais de 70 países.
Por outro lado, a China tem repetidas vezes comprometido-se a uma visão de multilateralismo definida por sua teoria de uma “comunidade com Futuro Compartilhado para a Humanidade” (Community of Shared Future for Mankind) - conceito consagrado na constituição chinesa por uma emenda de 2018. Essa teoria se baseia na premissa de respeito mútuo à soberania, à integridade territorial, à não-agressão, à não-interferência e à coexistência pacífica entre as nações. Enquanto na Conferência de Segurança de Munique de 2020, viu-se o Secretário de Estado Mike Pompeo criando agitações para uma confrontação ao estilo Guerra Fria, o seu equivalente chinês, Ministro de Relações Exteriores Wang Yi pediu para o mundo “transcender as divisões entre Ocidente-Oriente e Norte-Sul”
Esses princípios não são meramente teóricos, eles são forjados na própria experiência histórica chinesa, de semi-colonialismo, de liberação nacional e de solidariedade internacionalista para com o Sul Global. Mao Zedong notoriamente afirmava que o movimento de libertação nacional chinês era de um “internacionalismo aplicado”, reconhecendo que a soberania chinesa sempre fora inseparável dos movimentos anti-colonais e proletários ao redor do mundo.
Internacionalismo Chinês na Prática
Claro que tais princípios, mesmo com história, não seriam nada mais que retórica vazia se não fossem postos em prática. Mesmo assim, a China tem consistentemente tentado navegar numa “ascenção pacífica”, na contra-corrente de hostilidades ocidentais.
A China não se involveu em conflitos por mais de quatro décadas, tempo no qual o império estadounidense entrou secreta ou abertamente em guerras no Iraque, Afeganistão, Líbia, Iugoslávia, etc. Quando os Estados Unidos bombardearam a embaixada chinesa em Belgrado em 1999, o governo chinês negociou pacificamente um acerto de contas monetário, apesar dos protestos anti-EUA que rompiam em massa por o país no período. E, a respeito do orçamento militar chinês, que cresceu significativamente ao longo da última década, qualquer anti-imperialista que conheça a história concordaria que forças armadas formidáveis são algumas das únicas coisas que previnem o império estadounidense de promover assassinatos, troca de regime ou pura e simples invasão militar.
A Pandemia de COVID-19 revelou diferenças entre o imperialismo estadounidense e o multilateralismo chinês, enquanto os EUA se recusaram a abaixar as cruéis sanções sobre o Irã, a Coreia do Norte e a Venezuela, mesmo sabendo que isso dificultaria o combate à pandemia e significaria perdas desnecessárias de vidas inocentes. China e Venezuela criaram uma cooperação de transporte aéreo especial para transportar toneladas de kits de teste, E.P.I.s, suprimentos médios e delegações especiais para o Irã. Uma semana depois de os EUA bombardearem o Iraque, uma delegação de médicos chineses chegaram para ajudar no combate à pandemia no país, treinando médicos e mais que triplicando a capacidade de testagem em massa iraqueana. Delegações parecidas foram enviadas à Palestina, à Síria e diversos outros países.
Esses fatos sozinhos deveriam acabar com a falsa equivalência entre os dois países. Mas se os socialistas ocidentais falham em perceber a diferença, as pessoas vítimas de sanções e forçadas a fome pelos EUA, mas ajudadas pela China, certamente percebem.
Além disso, no dia 17 de Junho, o presidente chinês Xi Jingping prometeu acelerar a contrução conjunta de novos Centros para Controle e Prevenção de Doenças na África, além de uma rede de Hospitais de Amizade Sino-Africana – um gesto de solidariedade que os EUA cinicamente afirmaram que seria usado para “espionagem”. Vale ressaltar que esse anúncio foi feito semanas após a China comprometer-se em aumentar em 30 milhões de dólares o seu financiamento à Organização Mundial da Saúde (OMS), logo após a administração Trump politicamente suspender completamente o financiamento estadunidense; o que foi criticado por líderes da União Africana, por erodir o trabalho de controle epidêmico no continente.
Enquanto os mais variados líderes estadounidenses, desde Hillary Clinton até Pompeo, acusavam os investimentos Chineses em África como “neo-coloniais”, uma olhada qualquer nos números torna claro como essa narrativa só serve para naturalizar a hegemonia financeira ocidental sobre o continente: em 2017, 41% dos investimentos estrangeiros na África veio da Europa Ocidental, enquanto 19% veio da América do Norte e 8% da China. Enquanto o investimetno chinês, majoritariamente estatal e menos volátil à volatilidade dos mercados privados, tem uma taxa de criação de empregos mais que três vezes maior que os investimentos provenientes da América do Norte. Além disso, a China cancelará os empréstimos do governo sem juros a países africanos que vencem até o final de 2020.
Enqaunto o ocidente empurra a narrativa de uma “diplomacia do débito” no Sul Global, líderes com preocupações sociais, em nações como a Zambia e a Bolívia pré-golpe, veem como uma alternativa aos empréstimos do Fundo Monetário Internacional (FMI) e uma oportunidade para nacionalizar recursos e indústrias e desenvolver unidades fabris de valor agregado domesticamente. Enquanto o FMI e o Banco Mundial oferecem crédito em troca de mudanças estruturais e programas de austeridade, Xi insiste que o “modelo chinês” não é para exportação, que a China criou o seu próprio caminho, enquanto recusou a importar os modelos ocidentais, e que o desenvolvimento das nações deve ser produto de próprias suas condições
Falsas Equivalências Oferecem Cobertura para a Agressão Norte-Americana
Rejeitar a falsa premissa de uma escalada mútua ou de uma rivalidade inter-imperialisa não é achar que a China é um “paraíso dos trabalhadores” ou uma “utopia socialista”, a China certamente tem muitas contradições, incluindo desiqualdades entre rural e urbano, dependência de mercados ocidentais e desigualdade de renda. É, no entanto, isistir que qualquer uma dessas contradições é mais facilmente resolvida quando a primeira contradição – o imperialismo estadounidense – for superado.
A “guerra comercial” entre EUA e China, até o momento, foi instigada pela tentativa norte-americana e canadense de punir a gigante de tecnologia chinesa Huawei por violar sanções ao Irã, um belo exemplo da natureza das relações entre os dois países, uma relação de agressão imperialista. Os pontos-chave da guerra comercial – acabar com as restrições chinesas ao sistema financeiro estrangeiro, o envolvimento estatal na economia e forçar os direitos ocidentais de propriedade intelectual e sanções – são desenhados para erodir a soberania econômica chinesa, isolar a sua crescente industria tecnológia e policiar as suas relações com outras nações.
A guerra comercial fez os veículos de media salivarem prospecções a respeito da abertura de sua “indústria financeira de 45 trilhões” às companhias financeiras ocidenteais, como a American Express ou a JPMorgan, que penetraram políticas protecionistas chinesas após as concessões da guerra comercial. Não se engane: não há rivalidade, mas uma tentativa imperialista de esculpir a China mais uma vez.
Numa reformulação pseudo-socialista do “fardo do homem branco”, os terceiro-campistas ocidentais clamam “solidariedade ao povo chinês” na sua presumida luta contra o seu governo autoritário. Deixando de lado o quão parecidos soam com a benevolência de tipos como Steve Bannon e Pompeo, tais afirmações silenciam chauvinisticamente os mais de 90 milhões de membros do Partido Comunista da China, sem contar o inegável apoio e confiança nas instituições do governo que o público chinês demonstra pesquisa após pesquisa.
Preguiçosas e irreais equivalências entre a China e os Estados Unidos servem para cobrir retoricamente a escalada nas agressões estadounidenses, não só contra a China, mas contra todas as “nações inimigas” para as quais a China forneceu apoio diplomático e econômico essenciais a sobrevivência. Permanecer na pureza ideológica e no desengajamento preguiçoso de condenar "ambos os lados" é abdicar do poder e da plataforma que acompanha a cidadania ocidental.
Para realmente desafiar a Nova Guerra Fria contra a China, a esqueda tem de abandonar suas equivalências juvenis e trabalhar contra a máquina de guerra norte-americana onde e quando puder.
O Coletivo Qiao (@qiaocollective) é um coletivo de escritores, artistas e ativistas da diáspora chinesa determinados a se opôr às agressões contra a China e o Sul Global. Inspirado pelas vivências dos comunistas terceiro-mundistas e do socialismo e internacionalismo chinês, buscamos proporcionar fontes críticas para equitar a esquerda contra a desinformação e a propaganta que abastece a Nova Guerra Fria contra a China. Visite nosso site qiaocollective.com (eng.) para mais informações